segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Uma só ou muitas Yemanjás??

Yemowô, mulher de Oxalá; velha Assobá a fiar seu algodão; Iyá Ori, “mãe da cabeça do mundo”; Iyamassê, mãe de Xangô; Olossa, lagoa africana ou, na Bahia, a do Abaeté; Iemanjá Ogunté, esposa guerreira de Ogum Alagbedé; voluntariosa Assessu, mãe de Exu; jovem Assobá a fiar seu algodão; ou ainda, tal como Oxum Opará, a senhora de duas águas, onde o rio encontra o mar.

Sob tantas invocações, é difícil ver em Iemanjá apenas a Grande Mãe generosa que a todos acolhe. Generosa a ponto de criar Obaluaiê, quando Nanã o abandonou, por conta da varíola que devorava seu corpo frágil. Mas autoritária o bastante para mandar Ogum buscar Oxóssi na mata, quando Ossaim, que sabe o segredo das folhas, o enfeitiçou, inebriado pelo vinho de palma, e ele não mais quis abandonar seu convívio. O poderoso Ogum, senhor do ferro da espada e do arado, não conseguiu convencer Oxóssi a voltar, e então sua mãe o expulsou, punindo-o pelo fracasso, para, logo depois, arrependida, cair em prantos, derramando um lago de lágrimas que se juntaram às águas do mar… São enredos que vão tecendo histórias de deuses africanos, que só aprendemos aos poucos, ao ouvi-las contar e cantar nos terreiros…

Quanto à Iemanjá das águas do mar, esta não é sua face africana primeira. Pierre Verger, que tão bem conhecia os orixás, conta que, na África, eles sempre foram divindades territoriais, associados a lugares específicos, protetores do povo local. E Iemanjá se associa a um rio de mesmo nome, em antigo território do povo Egbá, entre Ifé e Ibadan, no Benin. Quando as guerras entre os nagôs levaram o povo Egbá a se mudar para a região de Abeokutá, para lá ele não pode transportar seu rio Iemanjá, mas levou seus objetos rituais para junto de outro rio, Ogum, que é a base territorial de seu culto na África e também de suas variações, sob as mais diversas invocações. A ligação com o mar vem de um mito específico dessa divindade a quem se saúda como “Odô Iya“, “mãe do rio”, e cujo nome – Yemojá, Yemaya, Iemanjá, derivado de “Yeyê Omo Ejá” que significa “mãe cujos filhos são peixes”, a sinalizar a abundância e a prosperidade que ela carrega.

Conta esse mito que Iemanjá, filha de Olokum, senhora do mar, se casou em Ifé com Olofim-Oduduá, a quem deu os dez filhos que se tornaram orixás, e foi por amamentá-los que viu seus seios imensos se tornarem flácidos e pendentes. Com o tempo, ela resolveu partir para a terra onde o sol se põe, em Abeokutá. Lá, sua beleza de mulher madura encantou o rei Erinlé, que resolveu desposá-la. Iemanjá aceitou, com a condição de que jamais mencionasse seus grandes seios caídos. E assim sucedeu, até que um dia o rei, voltando ao palácio embriagado, sem saber o que fazia, tropeçou em Iemanjá que, enraivecida, o chamou de bêbado inútil. E então ele a insultou, falando de seus grandes seios pendentes. Ofendida, Iemanjá decidiu fugir de volta para casa e, ao correr, derrubou uma pequena garrafa recebida de sua mãe, com a recomendação de quebrá-la caso se visse em perigo. Ao partir-se a garrafa, logo um rio se abriu aos seus pés, por onde Iemanjá poderia voltar para o reino de Olokum. Erinlé a perseguiu e, com seus poderes mágicos, passou a erguer montanhas para barrar o curso do rio, até que Iemanjá se lembrou de pedir auxílio a seu filho Xangô que desatou as cordas que amarravam as águas no céu e fez chover até que o rio chegasse quase ao topo da montanha. E então, tomando o raio de que é senhor, Xangô partiu ao meio a montanha, e pela fenda se escoou a torrente que levou embora Iemanjá. Desde então, ela não mais quis retornar à terra e é nas águas do mar que vive com Olokum.

Essa é a Iemanjá que se festeja no dia 2 de fevereiro. E se suas muitas histórias podem parecem contraditórias, é preciso não esquecer que elas são fragmentos de culturas estilhaçadas, fiapos de memória resgatados ao terror da escravidão, a nos lembrar do quanto a cultura brasileira deve sua riqueza a nossas heranças africanas.


texto de Maria Lucia Montes - www.brasileiros.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário